Total de visualizações de página

quarta-feira, 26 de março de 2014

Outono





Prefiro o Outono. Acho-o mais bonito, mais sábio. Mais tranqüilo. A Primavera é linda, cheia de cores, cios e odores. Mas não me comove. Não encontro nela lugar para a saudade. Por isso lhe falta aquela gota de tristeza, que mora em toda obra de arte. É que ela existe na paradisíaca inconsciência do fim... O Verão é diferente. Excita meu lado de fora e me transforma em céu, sol e mar. Misturo-me com seu universo luminoso, quente e suarento, cheio de cachoeiras e limonadas geladas. Tudo me convida a não pensar. A só rir, gozar, usufruir. Como diz Fernando Pessoa, pensamento é doença dos olhos. Ao que eu acrescentaria: do corpo inteiro. A gente pensa quando o dente dói, quando o sapato aperta, quando a azia queima, quando o coração tropeça. O corpo saudável é transparente. Sai de si e fica todo no mar, no céu, no sol. É a doença que o torna opaco. O verão faz este milagre comigo: esvazia-se de mim, e eu me perco (eroticamente) nos seus braços... Mas o outono me chama de volta. Devolve-me à minha verdade. Sinto então a dor bonita da nostalgia, pedaço de mim, de que não posso me esquecer. Primeiro é aquele friozinho pelas manhãs e pelas tardes. O Verão já se foi. Fica, dentro, o sentimento de que tudo é despedida. O Outono tem memória. Coisa de que se precisa para se ter saudade. E saudade, como nos ensinou Riobaldo, é uma espécie de velhice. Depois são as cores. O céu azul profundo, as árvores e grama de um outro verde, misturado com o dourado dos raios de sol inclinados. Tudo fica mais pungente ao cair da tarde, pelo frio, pelo crepúsculo, o que revela o parentesco entre o Outono e o entardecer. O Outono é o ano que entardece. E as tarde, como se sabe, são aquele tempo do dia quando tristeza e beleza se misturam. E o mundo de dentro reverbera com o mundo de fora. Jorge Luís Borges estava certo: a gente vai andando, solidamente, e de repente vê um pôr de sol, e está perdido de novo. É que o pôr de sol é mais que pôr de sol. É “este poente precoce e azulando-se o sol entre farrapos fino de nuvens, enquanto a lua já é vista mística, no outro lado” (Pessoa); “Uma última cor penetrando nas árvores até os pássaros, e este cantar de galos e rolas, muito longe” (Cecília). Quando tudo se aquieta, e o tempo diz sua passagem nas cores que se sucedem. O rosa, o vermelho, o marrom, o roxo, o negro... Sabe-se então que o fim chegou. Pôr de sol é metáfora poética, e se o sentimos assim é porque sua beleza triste mora em nosso próprio corpo. Somos seres crepusculares. É por isso que esta é a hora do terror noturno, quando as pessoas, lembrando-se do seu parentesco com as aves, voltam ansiosas para casa, e acendem as luzes que não se apagam. Gosto de ver os balões que sobem... Sei que são proibidos. Mas são belos. Não ficariam bonitos nem pela manhã e nem ao meio-dia. São entes do crepúsculo. É preciso que a luz já esteja indo para que sua beleza (e riso) apareçam, ao entardecer. Cada balão não será isto? Um grande riso ao cair da noite...
Há os prazeres da Primavera.
Há os prazeres do Verão.
Mas há uma alegria que só surge no Outono.
Quem, espantado pelo terror noturno, se refugia em casa, não pode ver nem a beleza do crepúsculo e nem o riso dos balões. Estes são prazeres que se dão somente àqueles que suportam o frio e as cores que mergulham no escuro. O que me faz lembrar aquela deliciosa estória zen: “Um homem ia pela floresta quando ouviu um rugido terrível. Era um leão. Ele teve muito medo e se pôs a correr. Mas a floresta era densa e o sol já estava se pondo. Não viu por onde ia e caiu num precipício. No desespero agarrou-se a um galho que se projetava sobre o abismo e lá ficou. Foi quando, olhando para a parede do precipício, viu uma pequena planta que ali crescia. Era um pé de morangos. Nela havia um morango vermelho. Estendeu o seu braço e o colheu. E comeu.” Aqui termina a estória.
Há morangos que se comem sobre o abismo.
Balões que só sobem ao crepúsculo.
E belezas que só existem no Outono.
É preciso beber a taça, até o fim
Rubem Alves

Nenhum comentário: