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sexta-feira, 8 de março de 2013

O QUE A ALMA ESCUTA


Ao contrário do que se pensa correntemente, em minha opinião não escutamos com os ouvidos.
 Explico: uma coisa é ouvir; já escutar... é outra maneira muito diversa de sentir o som que passa o canal e faz vibrar os tímpanos.
 Não se esgota nisso; ultrapassa este caminho e percorre outros, desconhecidos, dentro de nós. 
O percurso não se limita e atravessá-lo exige uma certa dose de consciência. 
Você pode ouvir muitas coisas, mas escolher aquilo que de fato se quer escutar, o que é guardado como informação, o que fica na memória, ou abala seus sentimentos - desencadeia toda uma série de reações corporais como arrepios, além de prazer-, o que faz o corpo dançar é completamente diferente.
 E a escolha entre o que se ouve e o que se escuta ocorre longe das orelhas.
 Escutar implica prestar atenção.



Creio que é possível ouvir coisas que nem som emitem. Escutar os pensamentos; o grito na arte de Edvard Munch; as vozes de um passado que não se podem ouvir de novo; vozes que nem sequer se conhece; escutar vontades; e com alguma dose a mais de loucura, já diria Bilac que até mesmo estrelas se escuta.

  “Ouvir Estrelas 

Ora (direis ) ouvir estrelas!
 Certo, perdeste o senso! 
E eu vos direi, no entanto
 Que, para ouví-las, 
muitas vezes desperto
 E abro as janelas, pálido de espanto 

E conversamos toda a noite,
 enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
 Cintila. 
E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, 
Inda as procuro pelo céu deserto. 

Direis agora: "Tresloucado amigo!
 Que conversas com elas?
 Que sentido tem o que dizem,
quando estão contigo? E eu vos direi:
 "Amai para entendê-las!
 Pois só quem ama pode ter ouvido
 Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Depois das estrelas, a manhã. É um som o responsável por descobrirmos, antes mesmo que Shakespeare declarasse abertamente, que o romance entre Romeu e Julieta destina-se a um fim trágico. O canto da cotovia anuncia a chegada da manhã e, com ela, o declínio vertiginoso da história. Julieta, que pressente o fim no canto, prefere escutar um rouxinol. Mas Romeu a chama à realidade. Uma das passagens mais importantes da literatura mundial: 
  JULIETA — Já vai embora? Mas se não está nem perto de amanhecer! Foi o rouxinol, não a cotovia, que penetrou o canal receoso de teu ouvido. Toda a noite ele canta lá na romãzeira. Acredita-me, amor, foi o rouxinol. 
ROMEU — Foi a cotovia, arauto da manhã, e não o rouxinol. Olha, amor, as riscas invejosas que tecem um rendado nas nuvens que vão partindo lá para os lados do nascente. As velas noturnas consumiram-se, e o dia, bem-disposto, põe-se nas pontas dos pés sobre os cimos nevoentos dos morros. Devo partir e viver, ou fico para morrer.” 


 Clarice Lispector teria também percebido o som em lugares que não se observa normalmente. 

  “Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.” 

 Com esta sequência do conto “Amor”, Clarice estabelece a ideia de um som que não existe, o das árvores que riem; situa sua personagem principal à beira de uma crise; na hora perigosa em que não precisava se dedicar a manter sua vida na perfeição, quando os filhos estavam na escola - sementes que plantara-, o marido estava fora e nem mesmo a casa precisava dela. 
Nesta hora, as árvores riem.
 É uma maneira de dizer que a vida da personagem, da maneira como ela mesma a teria construído, zomba de uma aparência irreal através do riso.
 Zomba da sua fragilidade através de um som que, verdadeiramente, não se escuta.
 O maior extremo da insanidade de escutar coisas que não emitem som estaria em escutar o silêncio.
 O calar, silenciar, permite ainda que se atente a uma ausência sem a qual não haveria barulho. É possível escutar o silêncio, a pausa, a falta. 
Ouso dizer que o silêncio é o mais pleno de todos os sons: sem ele, não haveria distinção de qualquer outro. Mais ainda, o silêncio pode ser bom de se escutar, mas também ensurdecedor, como se gritasse. 
Nos dois trechos do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, que coloco abaixo, vê-se um silêncio agradável e outro, incômodo, separados apenas por algumas páginas de texto.

 Primeiro: “Meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga, acotovelando-se de palavras na grande procissão do Destino.” 

E depois mais adiante: “Um silêncio frio. Os sons da rua como que foram cortados à faca. Sentiu-se, prolongadamente, como um mal-estar de tudo, um suspender cósmico da respiração. Parara o universo inteiro. Momentos, momentos, momentos. A treva encarvoou-se de silêncio. Súbito, aço vivo, (...) 
Que humano era o toque metálico dos elétricos! 
Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo! 
Oh, Lisboa, meu lar!”
 Minha palavra final fica nesta peça de John Cage, chamada 4’33’’. O nome refere-se ao tempo que a orquestra passa com instrumentos em mãos, sem tocar uma nota sequer. 
O intuito da peça é fazer com que as pessoas prestem atenção aos sons que elas mesmas produzem. 
A peça é, por este motivo, paradoxalmente, a mesma coisa e, ao mesmo tempo, algo diferente toda vez que “tocada”.



Hão de concordar comigo que, se é possível escutar o que não soa, então escutar, de fato, não se faz com os ouvidos. Os ouvidos são para ouvir, o que pode vir a se tornar escutar. 

Mas escutar não se faz primordialmente com os ouvidos, se faz verdadeiramente com a alma.



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